Olá, pessoal. Dando sequência à série de reflexões que, a meu ver, contemplam minimamente o debate sobre a construção de uma “Educação para o Século XXI”, hoje pretendo falar sobre um assunto que chama minha atenção de diversos modos, desde o tempo em que eu era aluno de ensino médio, lá em 2003: “Qual a finalidade do Ensino?”.
Qual o propósito do ensino? Quando pensamos em educação básica, o que queremos alcançar ao estabelecer ementas, disciplinas obrigatórias e testes?
Acredito que nessa reflexão é preciso determinar se o propósito do Ensino é preparar o indivíduo para a sociedade, ajudá-lo a passar em concursos e vestibulares, manter a relevância de determinadas disciplinas e garantir empregabilidade de professores ou todas anteriores? E para começar gostaria de lembrar de algo bem comum em redes sociais.
Volta e meia vemos por aí memes e brincadeiras criticando conteúdos tidos como irrelevantes ou inúteis. Todo mundo conhece a brincadeira feita com a fórmula de Bháskara da figura ao lado.
Bem, há vários tipos de resposta a esse tipo de provocação/reclamação sobre a utilidade de conteúdos trabalhados. O próprio Marco (parceiro nosso) já escreveu dois textos excelentes aqui e aqui sobre o porquê de aprendermos na escola conteúdos que, à primeira vista, não terão utilidade direta em nossa vida adulta (dependendo da carreira/vida escolhida) e como, além dos conteúdos, aprendemos um modo de pensar e raciocinar que nos é muito útil. Eu aprecio muito os pontos que ele defende em ambos os textos, como o fato de que há habilidades secundárias essenciais que você aprende e exercita ao lidar com determinados conteúdos, mesmo que eles em si possam não ter utilidade óbvia para sua vida futura. Por exemplo, como a fórmula de Bháskara, apesar de não ter aplicação direta na carreira de um romancista, o ajudou a exercitar o raciocínio lógico muito útil ao elaborar determinadas tramas. De todo modo, há o argumento (que esbarra um pouco na reflexão de hoje) de que há modos mais interessantes e eficientes de se ensinar e exercitar o raciocínio lógico/matemático do que apresentar para o aluno 20 equações de segundo grau para ele resolver usando aquela fórmula e procedimentos específicos.
E é um pouco dessa reflexão que o professor de matemática Dan Meyer faz em sua brilhante palestra TED: “O Ensino de Matemática Precisa de Reformulação”. Ele começa brincando com a plateia e falando como sua carreira é difícil porque, como ele diz: “Eu vendo um produto a um mercado que não quer o produto, mas é obrigado por lei a comprá-lo” e em seguida lança a provocação: “Eu poderia aplicar um teste de álgebra 2 para vocês agora e a turma não tiraria mais do que 0,25% de acerto e isso diz muito menos sobre os alunos e o ensino em si, e mais sobre o sistema educacional do ensino de matemática”.
Basicamente, sua maior crítica e reflexão vem do formato como conteúdos são transmitidos e cobrados de modo desconexo com a realidade, em procedimentos padrão repetitivos e com pouca criatividade, visando mais a memorização. E isso está presente mesmo nos problemas que parecem criativos, complexos e contextualizados. Por exemplo, ele diz que todo problema de matemática (ou física) em um livro texto tem em seu enunciado todas as informações necessárias para serem aplicadas em uma, ou mais equações e gerar uma resposta esperada.
A grande diferença entre os básicos e os “aplicados” é que os básicos têm enunciados mais diretos e comandos mais simples para treinar uma habilidade específica: a memorização do procedimento. Já os “aplicados”, são basicamente o mesmo formato (todas as variáveis necessárias conhecidas), mas com alguns números mais complexos (com casas decimais para parecer realista) e um pouco mais de texto. E não há nada de realista nisso, afinal quantos problemas reais da vida ou da sociedade tem todas as variáveis necessárias conhecidas logo de cara? Assim, ele afirma que ao fornecer aos estudantes esse tipo de problema, estamos apenas limitando seu aprendizado ao lidar com problemas reais e os desmotivando no processo.
Enquanto que, ao apresentar um problema real (que como a maioria dos problemas reais, começa com poucas informações) o aluno tem a oportunidade de buscar uma solução do modo que faria na sua vida adulta, no mundo real, pesquisando na internet ou em livros, buscando informações e consultando diferentes fontes, de modo totalmente intuitivo. E, nesse processo, o professor poderia atuar pontualmente provocando no momento certo e indicando mecanismos e técnicas que podem economizar tempo e esforço.
Essa crítica do professor Dan se enquadra bem na fala da filósofa Vivian Mosé, nessa entrevista onde ela questiona o porquê de se transmitir informação em sala de aula (e cobrar a memorização dessa informação em provas e testes) se essa informação está sempre disponível? Se temos celulares e uma miríade de informações na ponta dos dedos, por que diabos o sistema de ensino não nos prepara para consumir essas informações e trabalhar com elas de modo a resolver problemas com criatividade e autonomia quando surgirem, ao invés de avaliar o quanto lembramos de dados e procedimentos sistemáticos?
Como professor de Física, posso puxar um pouco esse tipo de reflexão para minha área. Um exemplo que cheguei a comentar aqui quando falei sobre a BNCC é o cálculo de frequências de vibração dos harmônicos dentro da temática de acústica e ondulatória. A menos que você seja um estudante de música que quer entender precisamente como funciona cada instrumento, ou um fabricante de instrumentos, a presença de tais cálculos no Ensino médio não faz o menor sentido. E não é que o assunto não seja interessante, eu o acho fascinante e sempre que apresento esses cálculos neste contexto, os alunos acabam demonstrando interesse. Afinal, todo mundo gosta de música e entender um pouco como um instrumento pode gerar tantos sons diferentes é relativamente interessante. Mas, a partir da demonstração, dar um problema totalmente abstrato e desconexo da realidade com um tubo vertical qualquer cheio d’água e cobrar que o aluno saiba calcular, sem consulta alguma, qual a altura da coluna de água para que o tubo emita uma frequência de 458 Hz, a meu ver, não faz o menor sentido quando se quer avalia-lo para o acesso a um curso superior.
Mesmo que algum dia ele decida fazer um instrumento musical usando um cano e água, ele não terá de fazer de memória. Ele pode visitar a internet e em alguns segundos ter tutoriais em vídeo e texto explicando como fazer, como a coisa funciona e mais detalhes. E fará uma consulta muito mais eficiente se tiver sido treinado para criar uma rede de curadores de informação, além de encontrar e diagnosticar fontes de qualidade.
Deste modo, creio que na era da informação, uma das principais finalidades do Ensino (dentro de um contexto humanizado, como já discutimos na publicação passada) seja a de equipar o aluno para ser autônomo ao navegar pelo mar de informações que a internet disponibiliza. Ajudar o aluno a aprender a aprender, buscando desenvolver habilidades como leitura dinâmica, organização de tempo e informação, capacidade de síntese e interpretação de dados, fatos e argumentos, entre outros.
Nesse contexto, vejo um movimento (ainda tímido, mas crescente) de educadores que, mesmo dentro de um sistema bastante engessado por demandas como concursos e vestibulares, buscam trazer suas disciplinas e práticas docentes para essa realidade. Eles combinam a cobertura de conteúdos programáticos com o desenvolvimento de habilidades gerais, em uma tentativa ambiciosa de atender tanto os testes padronizados, quanto a formação significativa para uma vida adulta plena e funcional, em uma sociedade cada vez mais complexa e dinâmica. E esse movimento pode, eventualmente, se chocar com grupos que veem no ensino finalidades diversas, como manter a relevância de certas áreas do conhecimento, seja por uma questão filosófica, seja por uma questão prática de empregabilidade.
De todo modo, a meu ver, a transformação é inevitável e necessária. Mas, é preciso cautela e cuidado ao fazê-la. Afinal, nem toda inovação é necessariamente benéfica e, no anseio por inovar e transformar, podemos acabar cometendo erros com efeitos consideráveis. O que nos leva à reflexão da próxima semana: Como julgar a inovação?
Bom, espero não ter irritado ninguém (geralmente esse tipo de debate costuma gerar certa polêmica) e, como sempre, espero ter contribuído. Obrigado pela atenção e até a próxima semana.
Bom, acredito que a escola ensina muitas coisas sem uso pra vida prática, ou então não dizem para os alunos onde eles vão usar aquele conhecimento.
Certa vez, por pura curiosidade, entrei numa discussão com um professor de língua portuguesa sobre esse assunto. Eu defendia que a escola forma para o mundo, não pra concurso público. Ele defendeu que os alunos tinham direito de ter acesso a conhecimentos de gramática porque muitos ali, ao saírem da escola, prestariam sim concurso.
Hoje acredito que a escola deve formar o aluno para ser pesquisador. Assim, quando precisar, ele pode ir atrás do conhecimento necessário para provas desse tipo. Na teoria é lindo. Na prática é complicado.
Comcordo plenamente com você, Na prática é bem complicado. Mas é preciso tentar achar um jeito de fazer porque o modo como é feito hoje, em sua maioria, não está sendo eficiente. E aí acabamos tendo elevadas taxas de evasão (um ensino desconecto da realidade e que pareça sem propósito leva o jovem a sair do sistema).
É um problema complexo e desafiador, mas precisamos tocar na ferida que muita gente tem medo de tocar porque acha que se remover conteúdos ou adaptar emendas, vao diminuir as vagas em sua área ou ela terá de aprender muita coisa nova para se alocar no mercado.