COMPREENDENDO O PENSAMENTO (OU O CÉREBRO PREGUIÇOSO)

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Olá Pessoal. Esta semana escolhi falar sobre um assunto que venho estudando de modo diluído há mais de um ano, desde quando comecei a ler o livro brilhante (e ultra recomendado) “Rápido e Devagar: Duas formas de pensar” do Daniel Kahneman. Este livro (e todo material adjacente sobre o tema que fui tendo contato graças a ele) me apresentou uma teoria muito interessante sobre o funcionamento do nosso cérebro e o modo como processamos informação. E como educadores lidam basicamente com indivíduos processando informação nova, achei que seria interessante compartilhar aqui o que aprendi dessa teoria, e como ela pode nos ajudar a compreender alguns comportamentos que observamos nos alunos (e em nós mesmos), e quem sabe até a usar isso em nosso favor para promover um processo significativo de aprendizagem.

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A Teoria do livro se insere numa área chamada de Cognição Social e engloba estudos que se dedicam a compreender como processamos informações e o comportamento social que advém desse processamento. Não é meu objetivo aqui (nem o foco deste blog) aprofundar muito no debate sobre a área e suas vertentes. Para isso, recomendo alguns trabalhos como este e este. Aqui pretendo apenas explicar a teoria apresentada no livro e como acredito que ela se insere no contexto da prática docente.

Segundo o livro, nosso cérebro funciona pelo Modelo Duplo de Pensamento onde existem dois sistemas que são o Sistema 1, para a dimensão mais automática do processamento de informações e o Sistema 2, para a mais controlada (como mostra a Figura). Eu prefiro seguir o exemplo do vídeo que o canal Veritasium fez sobre o assunto e atribuir personagens aos sistemas, aqui vou chamar o Sistema 1 de Imediato e o Sistema 2 de Elaborativo.

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O sistema Elaborativo é você, sua essência, ele representa seu pensamento consciente, a voz dentro da sua mente.  É através dele que você é capaz de seguir instruções e executar uma série de passos. Se eu te pedir para multiplicar 13 por 217 sem uma calculadora, é ele que vai fazer a conta. Este sistema demanda esforço para fazer algo então ele é lento (devagar), porém cuidadoso e capaz de perceber e corrigir erros. Justamente por demandar esforço (e energia), este sistema tende a ser mais preguiçoso (ou seja, evitamos usá-lo com frequência).

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Já o sistema Imediato é rápido. É ele que precisa processar a quantidade enorme de informação que você recebe a todo momento através dos seus sentidos, e filtrar as partes relevantes de tudo isso. Logo, ele precisa ser incrivelmente veloz e energeticamente eficiente e, por isso, ele funciona automaticamente, sem que o Elaborativo (você) tenha, necessariamente consciência do que ele está fazendo. Por exemplo, se você vê um texto, seu sistema Imediato já o lê antes que você possa considerar e decidir se quer ler.

Ele preenche as lacunas. Eis um breve teste, olhe para a figura abaixo.

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Conseguiu reparar que o “H” de Julho e o “A” de Agosto são o mesmo símbolo? Mesmo assim você não teve problema algum em ler os nomes dos dois meses, porque o sistema Imediato fez a suposição correta para corrigir e completar, e a fez baseada em conhecimento prévio que existia em sua “biblioteca mental”. A ideia é que os dois sistemas estão relacionados a nossa estrutura de memória e ficam se alternando a cada interação nossa com informação. As respostas rápidas e automáticas do sistema Imediato são possíveis graças a nossa memória de longo prazo que compõe a biblioteca de experiências e conhecimentos que você acumulou na sua vida até o momento. Em contrapartida, o sistema Elaborativo atua totalmente com informações atuais e memória instantânea, o que o limita a atuar com apenas duas ou três ações mentais ao mesmo tempo. Deste modo, é comum enfrentarmos dificuldades com algumas ações mentais, como lembrar uma sequência aleatória de números. Essa ação mental se torna bem menos trabalhosa se a informação nos for familiar de algum modo. Por isso, lembrar a sequência aleatória de números 8102 pode parecer algo trabalhoso, enquanto lembrar os mesmos números na ordem inversa é simples, porque aí essa sequência ganha um significado que, neste caso, é o ano em que estamos, 2018.

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Esse processo de agrupar informação de acordo com nosso conhecimento prévio é chamado de fragmentação ou agrupamentos, e estudos indicam que podemos trabalhar, em média, de 4 a 5 agrupamentos de informação em nossa memória consciente ao mesmo tempo. Assim, quanto maior o agrupamento (mais informações contidas nele), maior é o número de informações que você consegue manipular ao mesmo tempo. A equação F = m∙a, por exemplo, é um conjunto de 3 letras e um símbolo matemático no qual físicos agruparam uma série de informações sobre a natureza e seu comportamento, que eles acessam ao visualizar essa expressão. Mas foi necessário muito tempo para processar, aos poucos, as informações que foram sendo agrupadas mentalmente na associação com esta equação.

E aqui entra a parte onde tudo isso é relevante para quem trabalha com educação.

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Neste contexto, aprender seria o processo de criar agrupamentos cada vez maiores com novas informações em sua memória de longo prazo para que seu sistema Imediato possa acessá-los quando necessário. Mas, para que isso aconteça, o sistema Elaborativo precisa trabalhar ativamente com essas informações (agrupando-as), as vezes repetidamente, e isso demanda esforço. Por exemplo, quando você estava aprendendo a andar de bicicleta deve se lembrar da concentração que mantinha na tentativa de manter o equilíbrio e não tombar para os lados e, como isso consumia toda a sua concentração. Mas, depois de fazer repetidas vezes, a coisa foi se tornando automática, ou seja, o sistema Elaborativo não precisa mais pensar a respeito porque o sistema Imediato já consegue acessar (já faz parte da sua biblioteca de memória).

Músicos e esportistas chama isso de memória muscular, embora a memória não esteja nos músculos e sim na parte do cérebro controlada pelo sistema Imediato. Mas o processamento de informações pelo sistema Elaborativo demanda esforço. E este esforço tem manifestações fisiológicas. Um estudo onde pessoas tinham de adicionar instantaneamente 3 algarismos a uma sequência de números aleatórios que aparecia na tela a sua frente, registrou sinais como aumento dos batimentos cardíacos, suor e dilatação de pupila.

Então, para resumir: temos um sistema Elaborativo que funciona muito bem para raciocínios mais elaborados e cuidadosos, mas que demanda muito esforço e energia, e um sistema Imediato, que faz uso automático da informação acumulada em nossa memória para lidar com interações de modo mais simplista (com risco de cometer erros), mas sem esforço e quase zero consumo de energia. O livro conclui então que, evolutivamente, nos adaptamos para fazer o melhor com recursos energéticos limitados. Então, sempre que possível, nosso cérebro delega os estímulos que recebemos ao sistema Imediato que vai dar uma resposta automática validada por nós (ou seja, o sistema Elaborativo), sem muito cuidado. E sempre que algo se destacar demandando maior atenção, nosso cérebro automaticamente aciona o sistema Elaborativo para que analisemos com cuidado a questão.

Isso é conhecido como aversão ao esforço do pensamento e alguns estudos acharam formas de nos forçar a usar o sistema Elaborativo. Por exemplo, um grupo devia resolver alguns problemas matemáticos simples, impressos em uma folha. Todos em formato similar ao seguinte: “Se, em uma loja de esportes, um taco de basebol + uma bola custa R$ 1,10 e o taco custa R$ 1,00 a mais que a bola, quanto custa a bola? ”.

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Estes problemas são conhecidos como “pegadinhas” por enganarem nosso sistema Imediato (rápido). O índice de erro foi de 85% (sistema rápido respondendo). Porém, quando os autores escreveram os mesmos problemas em uma fonte mais difícil de ler e com contraste ruim na impressão, os erros caíram para 35%. Um teste mais difícil de ler resultou em mais respostas corretas. E a explicação, à luz dessa teoria, é simples. Como nosso sistema Imediato não consegue automaticamente responder (Porque a leitura não é clara de imediato), nosso sistema Elaborativo é acionado e aí ele investe o esforço mental para chegar à resposta certa (que no problema acima é R$ 0,05).

Quando algo é confuso, o sistema Elaborativo entra em ação e trabalha, e quanto ele trabalha, temos mais chances de chegar a uma resposta certa e de lembra da experiência.

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Algumas empresas de propaganda têm usado isso (como sugere este trabalho) Uma vez temos propaganda vindo de todo os lugares (outdoors, sites, TV, aplicativos), nosso sistema Imediato já sabe como filtrá-las e fica mais fácil automaticamente ignorá-las. Por isso, algumas propagandas são desenhadas para ser enigmáticas e confusas (contrariando alguns princípios do Marketing, de que propaganda deve ser o mais simples possível). Se são assim, o sistema Imediato não consegue lidar com elas, porque não fazem sentido ou não se encaixam no padrão e aí ativam nosso sistema Elaborativo, e são mais memoráveis. Mas, onde entra a educação nisso tudo?

Bom, assim como no marketing, observamos algumas mudanças na Educação. Os formatos de aulas puramente expositivas (similares a palestras) que já foi o dominante, estão cada vez mais em declínio. Do mesmo modo como propagandas tradicionais, esse modelo mais familiar ao sistema Imediato é mais fácil de ignorar (e dar a resposta automática). Por isso, no lugar de aulas puramente expositivas, algumas universidades e escolas estão inserindo formatos onde os alunos são forçados a ser mais ativos, responder mais perguntas e fazer mais trabalho do que apenas escutar e tomar nota. E isso vai, inevitavelmente, ativar o sistema Elaborativo e fazê-lo trabalhar mais, o que é bom porque é assim que aprendemos. Mas, muitos estudantes não gostam, porque isso requer mais esforço. Assim como é difícil fazer alguém ir para academia se exercitar, é difícil fazer nosso cérebro acionar o sistema Elaborativo e fazê-lo trabalhar.

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Existe um apelo em se manter em sua zona de conforto e fazer o que já se sabe, por isso muitos músicos preferem tocar as mesmas músicas conhecidas que o sistema Imediato já automatizou, muitos alunos preferem ver vídeos que dão a sensação de compreensão, sem aprender algo de fato e, muitas pessoas preferem dirigir com o GPS ligado, você nunca se perde, mas também não aprende o caminho. Acho que o principal ponto aqui é que, todo educador que pretende inovar e gerar um aprendizado ativo, promovendo cada vez mais processos significativos de aprendizagem, deve conscientizar seu estudante de que, se ele realmente quer aprender e ser bom em qualquer coisa, com alguma chance de se tornar um expert, ele precisa estar disposto a se sentir desconfortável, porque pensar requer esforço, envolve lutar através da confusão e, para a maioria de nós, isso é, de algum modo, incômodo/cansativo.

Bom, era isso, me desculpem pelo post gigante, mas queria deixar bem claro a ideia por trás da teoria uma vez que ela trás um reforço às metodologias ativas (das quais sou entusiasta) e destaca a importância da conscientização dos alunos do seu papel ativo no processo, para que aceitem novas propostas. Como sempre espero ter contribuído, uma boa semana a todos e até semana que vem.

2 comentários em “COMPREENDENDO O PENSAMENTO (OU O CÉREBRO PREGUIÇOSO)

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