Afinal o que é quântica?

Recentemente um amigo meu me perguntou o que era realmente quântica? Porque ele andava vendo isso sendo usado em colchões, remédios homeopáticos e até cursos de psicologia. Mesmo não sendo um físico, ele havia notado que aquilo não fazia muito sentido. Praticamente todo tipo de produto e prática “alternativa” usava quântica como um adjetivo para seus produtos, como se aquilo significasse algo melhor.

“Porque usar essa aspirina normal se você pode comprar nossa aspirina quântica? Cansado de dormir mal? Experimente nossos colchões quânticos! Na promoção de hoje eles já acompanham 4 litros de água quântica”

Qualquer um que já viu a dezena de clickbaits de internet, consegue sentir claramente o cheiro de farsa nessas coisas. Então hoje vou falar um pouco sobre o que é realmente quântica, e de brinde evitar que você gaste 100 reais a mais por um colchão “quântico” (que é absolutamente igual a um colchão “não-quântico”). Mas antes de explicar a quântica, vamos deixar claro o que ela não é, e principalmente porque existe essa onda de coisas quânticas.

Usar palavras científicas e complicadas para vender produtos é uma prática tão comum (e desonesta) quanto usar mulheres semi-nuas para fazer marketing de produtos. Hoje em dia a ciência é uma das instituições mais respeitadas e eficazes no mundo, e qualquer associação com ciência torna um produto automaticamente mais confiável e melhor. Por isso, é extremamente comum que agentes de marketing usem frases deturpadas para dar um tom científico a suas mercadorias. “Nove em cada dez dentistas recomendam Colgate” é um exemplo clássico disso, mesmo que a propaganda não diga como essa suposta pesquisa na verdade nunca foi feita de maneira correta. Propagandas que mostram atores em jalecos brancos, ou laboratórios ao fundo também são frequentes, justamente para passar a impressão do produto ser mais eficaz (como essa esquete satiriza de modo brilhante).

E nessa mala de “efeitos especiais” entra o uso de termos científicos, sendo “quântico” um deles. Ok, agentes de marketing mal pagos usam termos científicos e uma roupagem acadêmica para tentar vender credibilidade a seus produtos. Mas por que especificamente quântica?

Simples, porque pouquíssimas pessoas sabem de fato o que ela é. Todos esses produtos na verdade são tão quânticos quanto a coxinha de catupiri da dona Neuzinha. Só que essa palavra é chique, ela é uma buzzword. E principalmente, ela vende. Esse é o único motivo para alguém colocar quântico em seu produto. Quântica é uma área do conhecimento que trata de partículas sub-atômicas, e apesar de nos permitir prever importantes fenômenos na física de partículas, ela não tem absolutamente nenhuma relação com colchões magnéticos, psicologia, espiritismo ou poder da mente. Tendo deixado isso claro, vamos a parte importante, o que é quântica?

Na verdade a física quântica é uma sub área da física que surgiu a cerca de 100 anos atrás, durante um período de grandes revoluções no pensamento científico. Diferente da teoria da relatividade restrita de Einstein (publicada em 1905), ou mesmo da teoria da gravitação universal de Newton (1687), a física quântica não possui somente um criador ou uma data definida para sua “descoberta”.

As bases iniciais da física quântica surgiram a partir de um problema na física clássica para explicar como um corpo muito quente emite radiação. Segundo todos os cálculos da física clássica, um corpo que absorvesse toda luz emitida sobre ele (geralmente chamado de corpo negro), e somente irradiasse luz devido a sua temperatura (como uma brasa brilhando pelo calor) deveria emitir muita luz em frequências altas. Na verdade, a previsão clássica é que esse corpo deveria emitir uma intensidade infinita de luz em altas frequências, o que estava em desacordo com a realidade. Um corpo aquecido emite luz em determinadas frequências, mas não uma quantidade infinita de luz. Esse problema era tão grave que ficou conhecido como a “catástrofe do ultravioleta”, e muitos físicos tentaram encontrar o erro nessas previsões. Em 1900, Max Planck conseguiu resolver parte desse mistério supondo que a energia nessa situação seria absorvida somente em pequenos pacotes individuais. Essa pequena suposição conseguia levar a resolução da catástrofe do ultra violeta, fazendo previsões corretas quanto a emissão de luz por corpos negros. Porém,  até então estávamos falando somente de um efeito muito específico, que ocorria em uma situação especial.

A brasa emite radiação num espectro muito semelhante ao do corpo negro.

Foi em 1905 que Albert Einstein (o alemão da relatividade) conseguiu pensar além. Nessa época ele estava tentando resolver um outro problema da física, o efeito fotoelétrico. Nesse fenômeno, a emissão de luz sobre um metal pode arrancar elétrons desse, gerando uma certa corrente elétrica. Mas, novamente, as previsões clássicas levavam a resultados errados. Einstein supôs então que na verdade a luz não é uma onda eletromagnética contínua, mas sim composta de pequenos “pacotes” de energia, quase como se ela fosse feita de pequenas partículas individuais de luz (que ele chamou de fótons). Novamente, essa pequena diferença fazia todas as contas baterem com o observado na realidade, mostrando que de alguma forma, a luz se comportava como partícula no efeito foto-elétrico.

Aqui é importante frisarmos que nessa época, a mecânica quântica sequer havia sido citada. O que tínhamos era somente alguns fenômenos muito particulares, em que a visão da luz como partícula podia ajudar a obter os resultados corretos ( e em geral era considerado somente como um truque matemático, e não uma característica real da luz). Mas de resto, absolutamente toda a física do século XIX era perfeitamente bem explicada pela mecânica clássica, que trava a luz como uma onda contínua. O conceito de quântica surge mais ou menos nessa época, mas somente para classificar a quantidade (quântica→quantum) discreta e individual de energia que era contida em cada “partícula” de luz (o fóton).

Para a grande maioria da comunidade de físicos da época, aqueles eram efeitos pontuais, curiosidades no máximo. Seriam necessários ainda mais de 30 anos de descobertas em diversas áreas para que a quântica começasse a ser entendida como uma característica fundamental e geral da matéria. Isto é, o conceito de que a energia na verdade é quantizada, sendo transmitida somente em intervalos discretos e não contínuos. O conceito de que a luz (uma onda) podia ser entendida como uma quantidade quase infinita de pequenas partículas indivisíveis, quanta de luz, levou outros pesquisadores a hipóteses ainda mais ousadas. Talvez o que nós sempre imaginamos como partículas (elétrons, prótons e nêutrons) pudessem se comportar na verdade como ondas.

Com esse novo tipo de abordagem sobre fenômenos microscópicos, uma horda de físicos se debruçou a procurar novos efeitos que não pudessem ser explicados pelo modelo clássico da matéria (que dizia que a luz é uma onda e a matéria é feita de partículas). E de fato, entre 1900 e 1940, foram encontrados diversos fenômenos onde, ou a luz se comportava como partícula, ou partículas se comportavam como ondas. A lista é muito grande, então deixo aqui alguns links para os experimentos mais famosos, com uma breve descrição (lembrando que a Wikipedia em inglês contêm infinitamente mais informações sobre os temas):

Todos esses experimentos tinham uma coisa em comum, eles mostravam que em situações muito específicas e determinadas, a matéria podia se comportar como onda, ou então as ondas de luz se comportavam como matéria. Eventualmente, todos esses fenômenos foram explicados por uma grande teoria unificada da quântica, que terá uma postagem futura própria. Após a maturidade da ideia de que partículas (ou ondas) pudessem se comportar como ondas (ou partículas), a mecânica quântica foi formalizada como uma única teoria robusta, que previa todos esses fenômenos além de fazer diversas previsões quanto a outros efeitos nunca antes observados. Tal formalização se deu devido a diversos cientistas, mas principalmente devido a Schoredinger, Dirac e Heisemberg.

Você pode notar que todos os efeitos quânticos que citamos tem algo claramente em comum, eles ocorrem somente em escalas atômicas. E aqui está o ponto crucial. A física quântica é a descrição de fenômenos MICROSCÓPICOS. Ela não anula a física clássica, ela não “cria” novos efeitos no mundo após ter sido descoberta. Do mesmo jeito que as pessoas não voavam antes de Newton entender a gravitação universal, a descoberta da física quântica não anula a descrição clássica para fenômenos antigos que já eram bem explicados. A quântica vai apresentar sim diversos fenômenos interessantes e anti-intuitivos. Mas todos eles dizem respeito a escalas muito pequenas, que de maneira alguma afetam diretamente nossa existência cotidiana. E ainda mais importante, todos esses fenômenos são absolutamente bem descritos pela matemática e física.

Equação de Schröedinger em sua forma mais simples. A quântica é muito bem definida matematicamente.

Diferente do que o vendedor de colchões quânticos te disse, a física quântica não é a feira da uva onde tudo pode acontecer. Uma matemática absurdamente pesada e robusta é usada por físicos para entender e prever fenômenos microscópicos com precisão de milhares de casas decimais.

Mas justamente devido a essa dificuldade de explica-la, e devido a quantidade enorme de novos fenômenos microscópicos que são anti-intuitivos, a física quântica se tornou o alvo favorito de charlatões. Ao usar o nome “quântico”, raríssimas vezes alguém irá questionar a veracidade de um produto, e na maioria das vezes a pessoa irá pensar que se trata de algo diferenciado. Mas como na propaganda de Colgate, isso não passa do uso de nomes e termos científicos para vender um produto absolutamente idêntico a qualquer outro.

Física quântica é uma área fascinante da ciência, e dentro dela descobrimos fenômenos incrivelmente anti-intuitivos (que serão tratados numa postagem futura) , chegando mesmo a questionar a validade de nossas percepções. Mas ela ainda sim é uma teoria física, com previsões absurdamente precisas, e que tem uma área de validade muito clara: fenômenos microscópicos (e não o colchão mágico magnético quântico).

Por fim, para quem se interessou pelo assunto, seguem algumas outras fontes de informação sobre o tema, já que ele por conta própria renderia umas  5 postagens fácil.

Vídeo em português muito legal sobre porque quântica NÃO tem nada a ver com poderes da mente, espiritualidade, hadouken ou colchões magnéticos:

https://www.youtube.com/watch?v=4rNI2esH1EE

Vídeo e inglês (com legendas) ótimo do CrashCourse introduzindo de verdade a física quântica de maneira simples:

https://www.youtube.com/watch?v=7kb1VT0J3DE

Introdução a física quântica:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Introdu%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0_mec%C3%A2nica_qu%C3%A2ntica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *