Ok, espero sinceramente que essa seja uma das postagens mais complexas e viajadas que eu fiz, porque atualmente estou me sentindo como na tirinha abaixo:
Mas vamos do começo, lembrando da tia chata que te ensinou a fazer lambança na pré-escola. Quais são as cores primárias e como obtemos cores diferentes? Obviamente que a resposta é azul, vermelho e amarelo. Misturando essas três cores eu consigo criar qualquer outra cor existente no universo!
Ai você vai lá todo empolgado com seus guaches e mistura amarelo e azul: Uhuuu, verde! Deu tudo certo e a vida é bela! Agora deixa eu obter aquele roxo brilhante, quase púrpura bonito. Misturo vermelho, um pouquinho de amarelo pra dar brilho e azul. Evidentemente vai dar certo. Resultado:
Misturando cada vez mais cores você só piora a situação e obtêm um tom cada vez mais da cor de sua alma. Ok a ideia da tia estava errada (como a maioria das escolhas de sua vida). Usando guache amarelo verde e azul somente você não consegue todas as cores do espectro visível. Principalmente usando guache de baixa qualidade. O motivo disso vem do que a tia do ensino médio te explicou. Existem misturas aditivas e misturas subtrativas. O guache vermelho tem essa cor porque ele absorve todas as cores que são emitidas contra ele e reflete somente a cor vermelha. O azul absorve todas cores mas reflete o azul. Quando você mistura as duas tintas, você não vai ter algo que reflita azul+vermelho. Você tem uma pasta que absorve quase tudo, incluindo azul E vermelho. Maaaaas, uma fraçãozinha do vermelho e azul ainda escapam, e a combinação das duas cores te lembra um roxo cagado. Agora, se você ainda por cima misturar o amarelo, ai sim todas as cores vão ser absorvidas, te restando uma pasta horrível com cor cada vez mais escura. As “cores” possíveis no caso da mistura subtrativa seriam semelhantes ao caso abaixo:
Mas o processo aditivo é diferente. Esse é o caso clássico de você pintar uma de cada cor num disco e gira-lo muito rápido, fazendo o disco parecer branco. Ou o caso do retroprojetor que emite 3 feixes de luz de cores diferentes na parede e você percebe como branco. Em ambos os casos, as cores são todas refletidas juntas, e quando todas chegam em seu olho, a percepção é do branco.
Agora sim, fechou então. Posso fazer todas as cores do universo projetando as cores vermelho azul e amarelo…
Mas pera, o retroprojetor usa é vermelho azul e verde! Na verdade todo equipamento eletrônico segue o padrão RGB (Red-Green-Blue). Como eles podem criar todas as cores usando uma cor teoricamente secundária, o verde? Não somente isso, mas para piorar a coisa toda, impressoras usam ainda um terceiro sistema, o CYMK (cyan, yellow, magenta, key). Nesse caso elas imprimem somente as cores ciano, magenta, amarelo e preto. E ainda assim ambos esses sistemas conseguem reproduzir facilmente todas as cores do espectro. A tia do pré estava errada novamente.
A questão é muito mais profunda e complexa na verdade, e existem comissões internacionais e áreas de pesquisa inteiras dedicadas somente a isso. A própria ideia de 3 cores primárias é um conceito simplificado que vem de séculos atrás. Sim, dado um meio específico (como aquarela, ou guache, ou tinta de impressora) você pode definir arbitrariamente, 3, ou 4 ou 7 cores que você considere primárias e a partir delas criar novas cores com combinações. Porém nenhuma dessas cores é inerentemente mais “fundamental” do que as outras, e a combinação de cores primarias dependerá muito da substância usada para “pintar”. No caso de impressoras, é mais efetivo combinar ciano, amarelo, magenta e preto. Para pinturas a óleo o esquema clássico de amarelo azul e vermelho funcionou bem por um tempo (principalmente devido às diversas limitações envolvendo obtenção de tintas a óleo variadas). Mas não existem somente umas poucas cores fundamentais, afinal cores são somente frequências de vibração da luz, oscilações como na corda de um violão.
De acordo com sua professora de física da faculdade, na verdade as cores que percebemos vem do que nossos olhos interpretam das frequências de luz diferentes. Do mesmo modo que as notas que ouvimos são interpretações de nosso cérebro de vibrações do ar em frequências diferentes. O vermelho possui uma frequência bem definida, assim como o ciano ou o verde-limão, e nenhuma dessas cores é a “mistura” da outra na verdade. Por isso temos o espectro de cores, mostrando cada cor de acordo com sua frequência. O espectro possui somente uma dimensão, ele é a variação contínua da frequência da luz.
Do mesmo jeito que a corda de Sol de um violão vibra com uma frequência muito específica (247 Hertz, ou seja 247 vezes por segundo), que nós interpretamos como a nota familiar, o que chamamos de vermelho é uma vibração da luz (do campo eletromagnético) com uma frequência bem definida de 400 – 484 Terra-Hertz (400.000.000.000.000 oscilações por segundo). Como a frequência é um número escalar (ou seja, ele possui somente uma dimensão, aumenta ou diminui linearmente), podemos obter todas as cores simplesmente variando a frequência da luz continuamente, começando no vermelho (400 Tera-Hertz) e subindo até o violeta (668 Tera-Hertz). Cada tinta emite a luz numa frequência específica, e se combinamos duas tintas de cores diferentes elas emitiram duas frequências diferentes, que nosso cérebro irá interpretar como a frequência média entre elas. Dá até para conferir no espectro acima, se eu pego o azul e misturo com o amarelo, a frequência entre elas é o verde, como o esperado! Fechou, temos tudo explicado e bonitinho.
O tio prof. de pintura da disciplina de extensão na universidade até entende isso, e para facilitar sua vida te ensina a desenhar com mistura de cores a roda cromática, que é o diagrama linear do espectro de cores, mas desenhado como um círculo (note que a cor não muda se traçamos uma linha reta do centro até a borda do círculo. Apesar de ele ter duas dimensões efetivamente (é um plano), o círculo abaixo tem as mesmas cores que a escala linear do espectro de cores acima. Foco nisso, o diagrama é linear! A variação ocorre somente ao percorrermos o circulo no sentido do “giro” (ou seja, somente ao mudarmos o ângulo). Variando a coordenada do raio a cor não muda:
Ok, entendemos as cores. O espectro linear vai do violeta até o vermelho e contém todas as cores que enxergamos, das simples às complexas, como o azul, verde-limão, Roxo, ciano, marrom, cinza, rosa…. Pera… Rosa… cinza… preto… marrom…
Ahhhh INFERNO! Como assim até o espectro de cores está errado?! Cade o rosa choque, o azul petróleo/azul da Prússia, marrom, todas as tonalidades de cinzam etc etc???
Sim, mesmo o diagrama de cores ensinado a nível de graduação não contém todas as cores, e é somente uma super simplificação da quantidade absurda de cores que nossos olhos conseguem perceber. Apesar de que o espectro contém todas as frequências de cores que o olho humano pode perceber, ele não mostra todas as cores. Sim, sua vida é uma mentira. O que nosso cérebro percebe como cor não é somente a frequência da luz emitida, mas um complexo padrão entrelaçado de diversas características.
Antes de explicar tais características, talvez seja melhor usarmos uma analogia muito simples para vermos como uma característica física (a frequência) não é capaz de determinar totalmente a percepção subjetiva de nosso cérebro. Pegue um violão e toque a nota Dó, agora pegue seu piano de cauda e toque o mesmo Dó (que tem exatamente a mesma frequência). Toque o mesmo Dó no seu saxofone e depois desenterre do sótão sua cítara e toque o mesmo Dó. Todos eles terão a mesma frequência, mas soarão visivelmente diferentes. Isso porque o timbre dos instrumentos são diferentes. Para as pessoas que não possuem (por motivos inimagináveis) todos os instrumentos citados acima, o vídeo abaixo mostra a mesma nota em diversos instrumentos, a partir do momento 0:25.
No vídeo você pode notar que as cores representam a intensidade de cada frequência (e cada frequência fica em um ponto do eixo vertical), e de fato todos os instrumentos tem como frequência dominante a mesma nota (a cor mais intensa e cheia no ponto vertical mais baixo). Porém cada instrumento terá uma sequencia super complexa e intrincada de frequências secundárias sendo tocadas junto da primária. Mas não somente isso, se você notar alguns instrumentos irão modular temporalmente a intensidade das frequências conforme o tempo passa, ou variar de maneiras particulares o volume de todas as frequências ao mesmo tempo. Essa quantidade absurda de parâmetros e variações que irá dar o timbre específico de um instrumento, mesmo que a nota tocada seja a mesma. E o timbre é só uma de dezenas de características diferentes que a mesma nota pode assumir. Converse com qualquer maestro de um coral e ele poderá notar a diferença entre duas pessoas entoando a mesma nota, não somente quanto a diferença de timbre, mas quanto a “brilho” da voz, “projeção”, impostação, etc. De forma muito idêntica, alguém que trabalhe com arte pode visualizar facilmente características de uma pintura, ou mesmo de uma cor, que passariam desapercebidas por meros mortais, desde a “temperatura” até opacidade, reflexividade, etc etc. Na postagem sobre sinestesia falamos também um pouco sobre isso.
Do mesmo modo, o que nós percebemos como cores é um complexo emaranhado de diversas características misturas de frequências de luz. O espectro linear contém todas as frequências possíveis, porém quando vemos um rosa-choque, ou um cinza chumbo, o que chega ao nosso olho é uma mistura de diversas frequências que possuirão uma frequência dominante usualmente associada aquela cor, mas uma dezena de outras frequências e intensidades que juntas formarão nossa percepção da cor, que é muito mais complexa do que uma escala linear (de uma dimensão) onde todas as cores são facilmente agrupáveis.
Ok, alerta de postagem muito gigante. Na próxima semana vou fazer a parte dois dessa postagem ,onde vamos explicar a parte mais complexa (e interessante) de diagramas de cores. Já vimos que não se pode colocar todas as cores percebidas em uma linha unidimensional. De fato artistas usam duas dimensões para “classificar” as cores, como no círculo abaixo onde, além da variação angular das cores, temos agora uma variação radial, com as cores mais claras ficando perto do centro do círculo. Mas esse modelo ainda não contém todas as cores, e veremos que uma descrição minimamente geral necessitará de pelo menos uma dimensão a mais, e que na verdade uma boa descrição pode envolver formas de até 4 dimensões!!!
Imagem bonus, um (dos vários) Gamut multi dimensionais utilizados para se descrever uma fração das cores percebidas pelo olho humano:
Um comentário em “Onde fica o cinza na escala de cores? Entendendo melhor as cores, dimensões superiores a 3 e limitações humanas”